8 de novembro de 2019

Faça ter valido a pena

Eu me lembro. Não consigo esquecer. Mesmo depois de tantos anos, nunca consegui. Tenho baseado minha vida no que ouvi naquele pátio.

Era uma quinta-feira quente e mais escura que o normal quando eles invadiram meu barraco. As luzes do farol da viatura machucavam os meus olhos, rodavam em azul e vermelho, iluminando a imundícia de onde vivi. Eles entraram e jogaram tudo no chão. Puseram algemas pesadas, e quarenta dias depois, estávamos no tribunal: minha culpa e eu.

Confesso que não tinha coragem de levantar a cabeça. A vergonha era um chapéu de chumbo, pesado demais para mantê-la erguida por muito tempo. Meu pescoço doía. Não me lembro de uma palavra dos advogados, mas recordo-me bem da voz do juiz ao bater o martelo: “culpado”! “Culpado”, ele disse. Culpado, e ele tinha razão. Condenado à estaca, eu devia ser apedrejado vivo antes de ser pendurado. Não retruquei, não xinguei ninguém, não amaldiçoei, não disse nada. Eu sabia que era culpado e não tentei provar uma inocência que eu sabia não possuir.

A execução era sumária, portanto, o meirinho puxou-me pelo braço, já fixamente preso pelas correntes. Deu-me dois empurrões pelas costas, e como uma mula de carga, eu entendi o recado. Enquanto caminhava rumo à morte certa, o tilintar das correntes zumbiam como pano de fundo para minha mente cheia. Cheia de nada. Eu vagava entre este mundo e o meu.

Não vou dizer que não tive medo. Minha alma estava aterrorizada, mas não conseguia esboçar reação. A certeza da culpa me fazia pensar em justiça, e isso me parecia ser uma coisa boa, afinal. Aceitei minha condenação, mas nem disso me orgulho.

Correntes aos pés e aquele jeito torto de andar, com passos atrapalhados olhando pro chão, vi outros passos. Passos de um homem alto em minha direção. Já o havia notado entre os que assistiram meu julgamento, mas meu chapéu de culpa me fazia desviar dele o olhar, e voltava a olhar para dentro de mim: eu via culpa.

Agora consegui ver seu rosto, e ao vê-lo, por um instante, esqueci-me do tribunal, esqueci-me das algemas, esqueci-me das correntes, esqueci-me até da justa condenação. Quando tentei olhar nos seus olhos (me senti movido a isso), não consegui por mais de um quarto de segundo. Tive vergonha. Ele me parecia diferente, mas ao mesmo tempo familiar. Tentei contemplar aquele homem estranho mais uma vez, e foi ao olhar novamente que caí.

As pernas desligaram e caí de susto quando vi meu próprio rosto no rosto dele. Há poucos instantes era um homem, e agora aquele outro homem era igual a mim. Ele tinha o meu rosto! Não entendi nada a princípio. Minha mente ficou tão confusa que não conseguia me levantar.

Coração acelerou e eu respirava como uma locomotiva. Tentei encher os pulmões algumas vezes, mas parecia que o ar não entrava. Aquele homem se abaixou, olhou diretamente nos meus olhos e eu não conseguia acreditar. Era meu rosto que estava no rosto dele! Me arrastei velozmente jogando braços e pernas, recuando de medo por não entender que mágica assombrosa era aquela. Eu suava, minha barriga embrulhou na mesma hora e meu peito ficou frio.

– Quem é você?! O que é isso?!

Foi então quando ele falou. Meu coração antes acelerado, harmonizou quando ouvi sua voz agradável. “Calma”, ele disse, “estou aqui para ajudá-lo”.

Não entendia como as pessoas ao meu redor agora pareciam manequins de cera. Nem piscavam. Até hoje não sei ao certo o que houve naquela entrada de corredor. Mas sempre que penso, acho que aquele homem fez o tempo parar.

Ele me pediu o macacão de condenado, e o vestiu por cima das suas próprias roupas. Ninguém diria que aquele homem não era eu. Eu mesmo comecei a duvidar de quem eu era, de tão idêntico ele estava a mim.

Ele me estendeu a mão, e quando levantei, o som da multidão abriu, tudo voltou ao movimento, e o tempo voltou a passar. Olhando de fora, ouvia agora as palavras de condenação, os xingamentos, e todo ódio jogado contra o condenado. Não sei como aconteceu, mas nós havíamos trocado de lugar.

Vi toda a fúria da turba contra mim sendo vociferada contra ele. Ainda confuso, lembrei que o culpado era eu, não aquele homem. Com o pobre senso de justiça que ainda me restava, tentei avisar a multidão, puxava algumas pessoas e gritava, mas os xingamentos era mais altos que meus apelos. Todo esforço era em vão.

Eles o arrastaram para o pátio. Vi quando um homem baixinho e de cenho fechado lhe deu uma rasteira, e agora caído com a face no chão, as pedras começaram a atravessar o ar. Eu não quis ver, então fechei os olhos. Quando os abri novamente, havia muito sangue. Sangue nele, e sangue no chão. Continuaram jogando algumas pedras, mas ele não reagia, só olhava para a estaca. Tentei fazê-los parar, mas todo esforço era inútil, pois o ódio era grande. Eram muitos, e eles finalmente o penduraram no madeiro.

Eu chorei. Eles haviam matado o homem errado. Eles mataram O Inocente. Deitei-me no chão, lembrei-me de Deus e gritava perdão. Puxava maços de terra, e gritava perdão. Enfiei a cara na areia, e gritava perdão. “Fui eu! Fui eu! Não ele, não foi ele! Não era ele Senhor, era eu!”. As pessoas foram embora, e agora restávamos nós dois. O Corpo e eu. O Inocente morto, e o culpado gritante.

Depois de certo tempo perdi a voz. O céu enegreceu e uma sensação de paz estranha habitava minha alma. Comprovei que o choro de fato acalma o coração. Quando gastei todas as reservas de lágrimas, fiz esforço para sentar, e olhei a estaca. Não havia mais ninguém lá; ele tinha sumido.

Olhei ao redor varrendo por cento e oitenta graus duas vezes, não havia mais ninguém. Sentindo algo sobre mim, gelei o peito quando levantei a cabeça. Aquele homem, agora vivo, estava de pé, inclinado sobre mim e olhava-me sentado no chão.

Tinha olhos grandes, e profundos, e carregava ainda aquele mesmo semblante pacífico que havia me encontrado na condenação. Tentei dizer-lhe alguma coisa, explicar o mal entendido, e foi quando tentei falar e a voz não saiu que lembrei: havia perdido toda voz gritando perdão.

Ele sorriu, como se entendesse tudo o que eu não pude dizer. Olhou dentro da minha alma como a luz atravessa um cristal, e num tom limpo e amável falou: “Faça ter valido a pena”. De súbito, tomou meu braço e me ergueu do chão, e quando a ardência de uma brisa morna me obrigou a finalmente piscar os olhos antes esbugalhados, ele desapareceu.

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