10 de agosto de 2023

A vida real não tem glamour

Eu gostaria de começar constatando essa realidade, nem triste, nem feliz: a vida real não tem glamour. E é necessário constatar isso porque as pessoas estão até adoecendo pela vida incrível que veem nos outros e não encontram em si. Nesse sentido, eu poderia dizer até que a maior parte do que reluz não é ouro.

Ora, você chega em casa cansado das trombas da vida. Impaciente com o andar vagaroso desse trem bagunçado que o tempo lhe fez. Sua vida financeira não pode ser revelada pela vergonha que seria ter de explicá-la. Seu trabalho não é nada daquilo que sonhou antes da faculdade. O fracasso de sua vida amorosa pode ser facilmente explicado por um punhado de memes e só valem as risadas com um ou dois amigos.

Deitada na cama, pronta pra dormir, toma a pior decisão que poderia nessas horas: refugiar-se um pouco no celular. E veja o contraste da sua vida com essas fotos que começam a lhe aparecer sem você pedir: fulano está viajando — “que lugar incrível!”, beltrana está namorando com um cara bonito e bem formado — “feia desse jeito?”, ciclana emagreceu no crossfit — “isso é só pose, essa daí eu conheço”, e comenta “linda, amiga”. Tem receita fitness, mas você comeu chocolate ainda hoje. Tem umas frases cristãs bonitas, mas de vez em quando você assiste pornografia. Tem gente casando e você ficando pra titia.

“Meu Deus, quanto glamour! E eu aqui com meus peitos pequenos ou caídos, tanta celulite chata, essa barriga flácida, solteiro, sem carro e sem dinheiro. Meu peitoral não é dividido. Faz dois meses que não vou na academia e já paguei por três. Não deveria ter comprado aquilo agora. Olha essa fatura do cartão.”

Eis a vida real! E nela, observe, não tem glamour. Falo desses aspectos corriqueiros, para não citar as perdas familiares, as enfermidades e etc..

Chegando aqui, tem uma frase de Millôr que explica esse fenômeno antigo da grama mais verde. Ele disse: “Como são incríveis as pessoas que nós não conhecemos bem”. E elas só são incríveis por isso. Conhecer estraga o glamour.

A verdade é que toda essa vida requintada e chique é exatamente como a sua, ilusória, um tipo de disfarce, às vezes necessário pois há uma explicação plausível para isso. Mas antes, observe com olhos mais atentos à realidade por trás do glamour:

Aquela pessoa dormindo no balanço do ônibus na quentura do meio dia tem fotos de viagem incríveis no Instagram — mas ainda não terminou de pagar as parcelas do pacote CVC e ela está no ônibus pra isso, conciliar essas parcelas com a do telefone “alguma coisa plus” — daqui a três dias ela será assaltada faltando ainda seis parcelas para quitar a compra do Magazine Luiza. E ali está ela, suando como uma chaleira, menstruada, ouvindo o rangido das freadas, recebendo as baforadas dos escapamentos, dizendo não ao vendedor ambulante. É a vida real acontecendo diante de nós. E sejamos sinceros: no busão do meio dia, a vida real não tem glamour.

Observe que no perfil social, tem fotos de praia com poses estranhas, tem a alegria inebriante de tantos amigos sorrindo, tem fotos de beijinho com as mesmas pessoas que a difamam. Ora, nesse mundo bonito tem tudo de bom! Eu não me atrevo a dizer que é tudo mentira. Mas que é parcialmente verdade. E essa diferença é essencial à sua saúde pois lhe ajuda a expulsar o velho demônio da comparação, o mal do mundo, como explica Montaigne.

Digo que nem tudo é mentira, mas parcialmente verdade porque a vida, mas a vida real, em termos gerais, é dura demais para ser encarada como é. A maioria de nós precisa adicionar ilusão como tempero pra ser capaz de tragá-la. Arrisco-me a dizer que é quando você se torna mais realista que se torna também mais amargo. Mas ilusão demais é como açúcar. É verdade que adoça a vida, mas se você não souber a medida certa, vai estragar a receita ou acabar com diabetes.

E o diabetes da vida, nesse sentido, é a superficialidade. Por isso as pessoas estão ficando tão vazias. No afã de aparentar perde-se de vista a realidade de não ser. Você substitui a substância pela aparência. É como ver a foto de uma piscina semi-olímpica, mas quando se joga dá de cara no baldinho das crianças, pois a profundidade era a ilusão da perspectiva. Esse é o pior risco do glamour.

Assim, com equilíbrio, eu não tenho como condenar quem idealiza a vida a fim de suportá-la — é um artifício inerente à própria necessidade humana de existir. Mas posso assegurar que o que o resto do mundo chama de ilusão, os cristãos substituem, com firmeza, por esperança. Não vou tratar dessa diferença essencial aqui, mas posso dizer que o próximo passo é refletir sobre ela.

E por favor, não encare como pessimista essa coisa toda. O pessimismo é uma outra forma de idealismo, mas no campo oposto. É o equilíbrio que dá sabor a isso tudo, como disse. Afinal, a vida tem essa série de coisas ordinárias com pitadas de momentos incríveis, e a gente precisa aprender a lidar com a parte ordinária dela também.

Tem essa propaganda de colchão que ressalta a importância desse mágico instrumento para o sono ao dizer que “um terço de sua vida você passa sobre ele”. Dificilmente algo será tão ordinário quanto o estado inerte de, estatelado, dormir oito horas seguidas todos os dias. Mas mesmo nisso encontramos um grande deleite, não é verdade? Dormir demais ou de menos são ambos prejudiciais, e as pitadas de coisas incríveis só acontecem quando você está acordado, entre um sono e outro. Assim, aprender a atribuir a medida certa às coisas é essencial.

Não sei ao certo quem é o autor, mas esse pensamento ficou guardado desde a primeira vez que o ouvi: “Agimos como gostaríamos de ser, mas reagimos como de fato somos”. Ora, todo esse glamour das redes sociais, são as pessoas dizendo umas às outras duas coisas: primeiro o que elas não são, mas segundo o que gostariam de ser. Razão pela qual não vejo todo mal e hipocrisia nisso. É louvável desejar ser alguém melhor.

Mas a primeira necessariamente existe antes da segunda, pois quando realmente somos ou temos, a necessidade de mostrar que tem ou é desaparece. O próprio costume de ser ou ter apaga o glamour. Quando a despensa está cheia, a gente não perde tempo buscando no supermercado. É por isso que os multimilionários usam calça jeans e uma camisa qualquer, entram na concessionária e saem de BMW. É por isso que só sua família te vê com aquela touca de meia calça rasgada na cabeça, camisa velha surrada, espinhas na cara, e vai na cozinha só de cueca ou calcinha. O costume apaga o glamour.

Um antigo dramaturgo espanhol explicou essa relação de uma forma excepcional. Diz Calderón de la Barca: “Já sei que, se para ser o homem, escolher pudera, ninguém o papel quisera do sofrer e padecer; todos quiseram fazer o de mandar e reger, sem advertir e sem ver que, em ato tão singular, aquilo é representar mesmo ao pensar que é viver.”

Veja, mandar e reger é o que todo mundo quer. Mas isso é representar, porque a vida real é sofrer e padecer. Eu repito, não há glamour na vida real. E como representar exige um certo esforço, depois de um tempo a gente cansa, aí vem o costume, e ele apaga o glamour.

Extinguir as comparações pode nos ajudar. Porque se você notar essas pessoas na vida real, o glamour desaparece. E quase toda foto chique passa a lhe dizer: “eis como eu gostaria que fosse”.

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